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sábado, 18 de outubro de 2008

Antologia

o dilúvio

Há muitos dias já, há já bem longas noites
que o estalar dos vulcões e o atroar das torrentes
ribombam com furor, quais rábidos açoites,
ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.

Pradarias, vergéis, hortos. vinhedos, matos,
tudo desapar'ceu ao rude desabar
das constantes, hostis, raivosas cataratas,
que fizeram da Terra um grande e torvo mar.

À flor do torvo mar, verde como as gangrenas,
onde homens e leões bóiam agonizantes,
imprecando com fúria e angústia, erguem-se apenas,
quais monstros colossais, as montanhas gigantes.

É aí que, ululando, os homens como as feras
refugiar-se vão em trágicos cardumes,
o mar sobe, o mar cresce, e os homens e as panteras,
crianças e reptis caminham para os cumes.

Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,
arremessam ao chão pobres velhos cansados.
e as mães largam. cruéis, os filhinhos de leite,
que os que seguem depois pisam, alucinados.

Um sinistro pavor; crescente e sufocante,
desnorteia, asfixia a turba pertinaz:
ouvem-se urros de dor, e os que vão adiante
lançam pedras brutais aos que ficam pra trás.

Raivoso, o touro estripa os míseros humanos
que o estorvam, ao correr em fuga desnorteada,
e pelo ar tenebroso as águias e os milhanos
fogem, com vivo horror, daquela estropeada.

Cresce a treva infernal nos cavos horizontes;
o oceano sobe e muge em raivas cavernosas,
e as ondas, a trepar pelos visos dos montes,
fazem de cada vez cem vítimas chorosas!

Os negros vagalhões, nos bosques mais cimeiros,
silvam e marram já, em golpes iracundos;
resplendem raios mil em rútilos chuveiros,
e os corvos, a grasnar, desolham moribundos.

Blasfémias, maldições elevam-se à porfia;
fustigado plo raio, aumenta o furacão;
cada ruga do mar acusa uma agonia,
cada bolha, ao estalar, solta uma imprecação.

Cresce o mar, sobe o mar... e traga, rudemente,
da mais alta montanha o píncaro nevado.
e um tremendo trovão aplaude a vaga arlente,
que envolve, ao despenhar-se, o último condenado.

Cresce o mar, sobe o mar, que já topeta os céus:
e, levada p'lo fero e desabrido norte,
s ua espuma, a ferver, molha o rosto de Deus,
que lhe encontra um sabor nauseabundo de morte...

Cresce o mar, sobe o mar... Cada vaga é uma torre!
No céu, o próprio Deus melancólico pasma...
E, pelos vagalhões acastelados, corre
a Arca de Noé, qual navio-fantasma...

EUGÉNIO DE CASTRO (1869-1944), in Saudades do Céu

Eugénio de Castro e Almeida, Poeta e autor dramático, nasceu em 6 de Março de 1869, em Coimbra, e faleceu em 17 de Agosto de 1944, na mesma cidade.
Formado pela Faculdade de Letras de Coimbra, aí viria a desempenhar funções docentes e directivas. Ainda durante os estudos académicos, fundou, em 1889, com João Menezes e Francisco Bastos, a revista «Os Insubmissos», criada com o intuito deliberado de rivalizar com a revista académica «Boémia Nova», recém-lançada por Alberto de Oliveira e António Nobre.
Na polémica entre as duas publicações serão colocadas questões de versificação (o problema da cesura do alexandrino) que, se não têm a ver directamente com o Simbolismo, contribuirão para uma nova consciência da linguagem poética, afim das premissas daquele movimento, cuja emergência é usual datar-se de 1890, data da publicação do volume poético Oaristos de Eugénio de Castro.
Em 1895, Eugénio de Castro fundou a revista internacional «A Arte», que, anunci-ando a colaboração de autores como Paul Adam, Gabriele d'Anunzio, Maurice Bar-rès, Gustave Khan, Maeterlinck, Stéphane Mallarmé, Jean Moréas, Jules Renard, J. H. Rosny, ou Verlaine, pretendia constituir um elo no movimento simbolista internacional, ligando alguma poesia portuguesa (sobretudo a do autor) à poesia europeia.
Destaques na sua obra: Silva, (1894), Belkiss (1894), Tirésias e Sagramor (1895), Salomé e Outros Poemas (1896), O Rei Galaor (1897), Saudades do Ceú (1899), Poesias Escolhidas, 1889-1900 (1902), O Anel de Polícrates (1907), A Fonte de Sátiro (1908), O Cavaleiro das Mãos Irresistíveis (1916), Canções desta Vida Negra (1922), Cravos de Papel (1922), A Mantilha dos Medronhos (1923), Descen-do a Encosta (1924) e Últimos Versos (1938).
A poesia de Eugénio de Castro nunca se libertou do epíteto de esteticista e escolar, sendo, no entanto, uma referência incontornável na análise do processo de libertação da linguagem poética que viria a culminar com o modernismo, numa linha que muitos definem como ‘parnasiana’, e onde, igualmente, incluem João Penha, Gonçalves Crespo, António Feijó, Cesário Verde, Joaquim de Araújo e Florbela Espanca.
Com este poema de Eugénio de Castro, fechamos o curto ciclo dedicado ao - «parnasianismo» que, como movimento, foi uma reacção anti-romântica, cuja objectividade contrastava com a subjectividade romântica. Entre as principais características deste tipo de poesia, referência à perfeição dos versos, bem como ao tom descritivo, à referência a obras de arte e paisagens.
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